domingo, 23 de dezembro de 2012

Desapareceste na memória d’um dia de Inverno. Nos troncos húmidos de uma chuva forte que entrou nas tuas raízes velhas e retorcidas de Terra. Os braços. Os teus braços abertos abraçavam o ar em volta e tu sorrias de choro. As paredes da tua casa estavam mortas e tortas há muito anos. A ombreira da porta balançava num vento eterno sem eco, seco e oco de carunchos mortos há séculos. Era a casa dos teus bisavós. Agora habitada por mais de uma centena de seres. Três andares com uma biodiversidade imensa. Lesmas do tamanho de leitões pejavam o chão e os rodapés do piso térreo, num manto de viscosidade difícil de penetrar, calcorreado por osgas ocasionais que do raro sol do pátio caminhavam para os pisos de cima onde ancoravam ventosas em sítios estratégicos. Ventosas do tamanho de frigideiras oleosas. Uma rede intrincada de microgalerias aproveitara os interstícios das paredes de tabique, reino oligárquico de uma seita de bichos da prata. Saídos à noite e reunidos em círculos rodopiantes onde quer que o bolor ainda não tenha invadido os pedaços brancos da casa. O 3º piso era infinitamente mais silencioso, quebrado à noite pelo som agudo do bater das asas dos morcegos. Com o passar das décadas estas criaturas haviam assumido por absoluto o controlo e tomado dimensões e consciência humana. Um halo de vida e de sons de bichos enchia esta casa vazia de pessoas, vencidos os retratos oitocentistas de bigodes retorcidos montados em celas de éguas e mulheres de saias pretas, redondas como bolotas de sobreiro. Com filhos em mãos de canapés de madeira envernizada e criadas com pregadeiras em bustos volumosos. Despertados como actores, estes eram os últimos redutos dos seres que há séculos haviam habitado a casa. Venerados como catedrais de silêncio, os bichos haviam tomado estes entalhes de molduras douradas como verdadeiros locais de culto, chamando-lhes a Deus. Corria o ano de 2050 e o único sitio povoado de homens era o velho cemitério no topo da colina mais alta e ventosa da vila. Morta de gente. Vila viva de bichos que chamaram a si os ritmos da lavoura e dos pousios.
VÉU NEGRO COM ESTRELAS Está de noite e ainda tens o teu véu de estrelas pendurado na janela. Ao frio, as lâminas balançam no casco dos teus sonhos de neve e as plumas são baionetas bolorentas do teu cachecol levado pelas aves que partiram para paragens quentes de estio É um dezembro frio e duro E as mantas de quadrados já não te aquecem A lã é velha Feita de novelos que se desteçem ao frio Das ondas de vento de uma Manhã que nunca amanhece. E ficas quieta A ver os dias passar E a endurecer o teu coração cravado De memórias do verão passado Não tiras o teu véu da janela Nunca foi tão cedo para amanhecer os dias E nunca foi tão tarde para quebramos a aurora Destes dias sem memória Que exagero! Dizes tu dentro de casa. Não vés que está frio e este teu véu já não me aquece!

domingo, 28 de outubro de 2012

LINK PARA PAGINA DO FACEBOOK https://www.facebook.com/pages/Escresenhos/157465220972241?fref=ts

domingo, 22 de julho de 2012

Entrei devagar pela porta do quarto que se tinha esquecido de fechar. Cheirava a carne dilatada impregnada com um odor duvidoso de cheiro adocicado. Dei um passo em frente com cuidado para não tocar no espanta espíritos que pusera para dar o sinal de alarme. Havia em tempos obrigado toda a gente a usar guizos presos nas pernas. Uma moda que lhe ficou do tempo em que a casa estava cheia de gatos. Naquele dia, não saíra como habitualmente para regar as plantas do quintal. Encontrei-a estendida no chão, fingindo-se de morta. Os olhos entreabertos e cabeça forçadamente inclinada para trás deram-lhe o impulso necessário para abrir a boca. Um veio de saliva estranhamente espesso pregava-se desde o céu da boca até ao maxilar inferior. O cheiro fétido vinha dali. De quando em quando, um fedor mais forte fazia-se chegar, balançando o fio de baba como um pêndulo oscilante. Deixei-a ali. Já não era primeira vez que fazia aquilo. Resolvi que naquele dia não iria voltar por minha iniciativa. Era o que teria feito, não fosse o cheiro ter piorado incrivelmente a meio da tarde. Tive que entrar. De novo. No quarto. Fios de saliva amarela atados ao grande lustre dourado, lançavam-se num balançar suave para as grades da cama. A janela aberta para o jardim. Deixava ver as suas queridas plantas. A cama estava vazia. Havia aberto um buraco a cerca de um metro da nespereira e deitara-se lá. Com uma fina camada de terra a cobrir-lhe o corpo. Deixava ver um bocado da túnica creme com minúsculas florzinhas rosas salpicadas de poeira fina lançada pelo vento do fim de tarde. As plantas já tinham sido regadas. Sentia-se a cheiro térreo da terra molhada como depois de uma chuvada de Maio. Regar foi o último acto da sua vida. O seu corpo emanava agora um aroma estranhamente agradável. Deixara de cheirar mal. Cobri-a com bocados de terra arrancada às punhadas cheias do seu canteiro de malvas preferido. Evitei lançar-lhe os torrões maiores. Um manto de poeira elevou-se e coalhou o laranja do pôr-do-sol daquele fim de tarde. Minúsculos pozinhos reluziam na distância. Uma despida cheirosa para este dia que começara com um estranho odor a carne dilatada.
Decorridos dez longos anos, este jardim na frente da casa era já um grande pomar de nêsperas, que se aviam multiplicado como cogumelos a brotar num pinhal húmido e abandonado. Dez anos, exactamente dez anos, nesse dia 31 de Abril. Dez anos precisos. … Sobrara-me apenas um terraço nas traseiras da casa, menos ensolarado mas agradavelmente fresco nessas tardes de suores corrosivos de Agosto. Era o meu sítio preferido para ler. Aproveitando a sombra do telhado, na parede branca de cal, estava uma osga. Grande e gorda. Dei-lhe então com o cabo de uma vassoura. Cortei-lhe o rabo. O rabo fugiu e o torso e a cabeça ficaram a espernear. Um fio de sangue levemente azulado e uma goma rosa clara impregnaram então as frestas de pedra do chão do meu terraço. Em silêncio. Muda por morrer. De olhos abertos e com as ventosas bem presas ao chão. Não consegui tirá-la. Usei mil e um produtos abrasivos. Ácido muriático, umas espátulas velhas que o pintor tinha deixado, Sonasol Verde Amoniacal, uns pingos de WC Pato para ajudar. Nada. Atolei então o terraço com uma camada de terra quase a transbordar a soleira da porta. Preenchi até o seu nível raspando as franjas mal cortadas da rede verde que pus para os gatos não saírem. Tinha tornado o meu terraço num canteiro gigante. Reguei a terra. O cheiro a húmus era o melhor perfume que poderia desejar. Tinha agora o espaço que ansiara para fazer a minha horta biológica. Plantei as primeiras alfaces, couves e beterrabas, tomando em atenção as consociações e as alelopatias.
A primeira colheita foi primorosa. Comida directamente da terra. As mandíbulas descreveram a máxima abertura com o rosto ligeiramente inclinado para apanhá-las pelos talos. As partículas de terra enchiam as papilas gustativas com o calor que as aquecera durante o dia e traziam-me a frescura do orvalho dessa manhã. As beterrabas sabiam primorosamente a terra. Deitavam um fio de mosto levemente azulado e uma goma rosa clara que impregnava as linhas do meu pescoço e se alojava nas pregas da minha barriga e me inundavam o umbigo. Estavam 60ºC e estávamos ainda apenas em Maio. Eis senão quando, quase a transbordar vi a sair dele, do meu precioso umbigo, o rabo de uma osga. As minúsculas protuberâncias esféricas da sua pele faziam escorrer este fluido para fora, para a linha inferior do meu torso, junto da prega que o cinto marcara acima das calças. O rabo da osga ficou especado, como que a olhar para baixo, apontando o seu troço final em movimentos descendentes, aflorando a terra. Abaixo. Insistentemente como a broca de um dentista inexperiente. Mergulhou. Por fim dentro do canteiro. Nesse dia o aroma da terra tornou-se metálico, queimava de castanho o rebordo da soleira e latejava manchas de salitre do lado de dentro, junto à janela. Fui dormir. Na manhã seguinte todas as culturas tinham secado. No meio, um pequeno buraquinho assinalara que a osga havia saído. A partir daí olhou-me todas as noites junto de uma fresta quase por baixo do telhado. Nunca mais voltei a cultivar nada. Mas aquela porção de terra era o meu tesouro. Nos dias de chuva conseguia emanar o perfume mais sublime de terra molhada; e no Verão, o calor que emanava à noite era o consolo das mãos, que assentam para se despedirem em agradecimento a esse dia.

sábado, 8 de outubro de 2011





Há um lápis azul em cima de uma mesa redonda e torta.
Transborda de cascas de tremoços e de cascas que me saem da cabeça quando me ponho a coçar
Tenho sempre lápis a mão, mas raramente os uso
Por isso ficam com os bicos gastos de os usar na cabeça

Fica riscada no verão…quando são de aguarela, porque suo
E as calças, ficam gastas dos gatos pretos que passam e se roçam a pedir festas.

Que eu não dou porque passo dias a fio a coçar a cabeça
Num quarto onde fico sentado e o bedum das calças me cola as cadeiras
À espera
De usar o lápis azul

Porque sinto saudades tuas se nunca te encontrei? Se nunca te conheci?

sexta-feira, 5 de agosto de 2011


Esvazia-te do conteúdo que nunca tiveste e faz uma máscara azul.
Assim fica tudo bem e até gostam de ti.

Os teus cabelos são água fria a cair em cima de mim.

Uma cascata de prazer numa manhã de Outono.

domingo, 1 de agosto de 2010



São muitos os pontos negros desta tua face cravada de horror. Martelas as ameias dos castelos com as pontas hirtas dos dedos e dizes que tudo é literal. Literal! Ouço-te dizer-me ao ouvido baixinho para ninguém ouvir bem ou perceber outra coisa que quase soe a elogio. Dizes depois que a língua de Camões é fantástica, e de facto é-o. Entram no teu castelo os homens que empalaste em varas verdes, mesmo muito verdes, que devias ter esperado que secassem. Não quiseste esperar e agora contentas-te a martelar, vezes e vezes e vezes e quase e tantas vezes de mais, nas ameias do teu castelo que pensas que são as teclas do meu piano...Mas não!...Eu não tocarei mais essa tua canção!


Matemática pura essa das formas fractais do tempo das coisas dos bichos. As carcaças deles são bem mais antigas que as nossas. A nossa evolução criou-nos a posição erecta e hirta a andar sobre dois pés. Mas estes bichos de seis ou mais pés irão prosperar na que (dizem) quase esfera que nós quisemos chamar de Terra e que insistimos em tentar salvar o que sem nos preocupámos destruímos. Os nosso esqueletos serão exibidos em museus mas serão raros os fósseis porque neste dias do fim insistimos em morrer em hospitais assépticos. Seremos Homensauros neste novo mundo da Insectilização. Quero morrer rápido para reencarnar num gafanhoto e saltar para a próxima geração na Terra. Serie depois peixe e organismo unicelular e destruir-me-ei para criar um novo Big Bang


Atada. frente a ti e imóvel. plena de sede de verde de mar azul mas quase verde. Do fim. Da linha. A horizontal do lugar trespassa o horizonte do tempo. No fim de mim olhas para ti e não vez senão o mim em ti


Telúrica, a terra cheira a fórmio de cal seca na base da maré deste mar d'Agosto. A linha do horizonte é limpa e lisa nesta manta verde e porosa de areia tenue e quase transparent. A terra sabe a cal de formas liquidas no topo de rio seco d' inverno que será frio e gelado. e frio e seco ... e quente e verde; como o verde da folha esparssa e rota a secar no sol muito fino e frio; e quase quente de Maio


José era assim. Saía de manhã cedo de todas as criaturas que sonhara e desenhava um cartograma georeferenciado das formas da noite. Eram as linhas traçadas com coordenadas GPS da memória, mais vasta que qualquer memória informática binária que os homens possam a vir inventar.


Fugaz. A sede de te ter perto te mim fez-me antecipar o momento. Os dedos tentaram cravar-se na carne nuade ti mas tu não deixas-te. Eras o filho da terra de Jó e jorravas montes e vales de ternura profícua de seiva do sal da terra e das árvores verdes

quinta-feira, 17 de junho de 2010







Delicada, frente a ti, na frescura desta tempura d’Outono abraças o tempo que nos resta. Abraças porque ambos sabemos que o momento presente é tudo. Efémero e precioso. Despedimo-nos em cada beijo como se fosse o último, com a frescura do primeiro sabor de ti, numa manhã d’Agosto. Alva. É a sede da madrugada sob um sol frio. E o teu perfume abraça o ar em volta. Foste-te embora e o perfume que deixaste é a última lembrança de ti. Esqueci-me do teu rosto e da textura da tua carne. Fria e branca. Mas o perfume, que por norma é fútil e efémero assume agora como a única coisa eterna de ti. Só ele conheceu o sabor do momento. Traço assim a memória dos poucos dias de sede dessa manhã com aroma de Agosto.

Ditoso. O tempo que foi nosso é agora diluído no vento forte que vem do mar. Étereo e seco deixa em volta a textura apetitosa da tua pele. Sol frio da Primavera vem descongelar o gelo d’Inverno em mim, acordar o riso esquecido e arriscar o choro que é preciso soltar. Destapas assim, uma a uma as memórias de nós. Há muitos anos foste tudo para mim. A minha vida condensada em instantes de memórias como estratos de uma rocha fria e quieta. Mingua a fonte de ti na atmosfera salgada dos dias e na tempura da noite que faz esperar, frio o dia. Uma nostalgia do futuro abarca os meus últimos dias. Volátil, a fronte fica despedaçada em instantes febris que queres acalmar com pedaços de pano molhados, deixando fios de linho de linho branco, humedecidos e esquálidos como cabelos molhados no ralo da banheira. Uma massa disforme banca e suja tapa o ralo que tens nojo de destapar. Enquanto isso, preparas o lenho do meu caixão, arrepias afincadamente os panos de seda branca que colocas por baixo.

Destilar a sede da sede de beber. Distante e neutro de causas de sentir. Longe. A linha volátil do horizonte fervilha como uma estrada de alcatrão em Agosto ou como a areia mais fina no princípio da praia ao fim das escadas de acesso. A sede de poder saciar a sede com o fresco das gotículas numa garrafa de plástico acabada de abrir. Resta-me o calor não suficientemente quente para olhar os outros a saciarem-se de uma sede de vazia de nada.